Em 19
de agosto de 1839, a Academia Francesa de Ciências torna pública a invenção da
fotografia. O estado francês adquirira a invenção e a tornava um bem público,
livre para exploração de qualquer interessado. O processo fotográfico foi
detalhadamente exposto e suas vantagens enumeradas. François Arago, sábio
reconhecido pela sociedade e um líder da câmara francesa, foi quem propôs a
compra do invento e sua divulgação ao mundo. Arago previu as grandes possibilidades da fotografia e as
transformações que causaria na ciência e
no mundo. Em seu famoso discurso na Câmara de ciências dizia:
“Que enriquecimento viria a arqueologia a
receber da nova técnica! Para copiaros milhões e milhões de hieróglifos que
cobrem, mesmo no exterior os grandes monumentos de Tebas, Mênfis, de Karnak,
etc., seriam precisas vintenas de anos e legiões de desenhadores. Com o
daguerreótipo, um só homem poderia levar a
bom termo esse imenso trabalho” (in Freund,
19- p.39)
E , em tom de profecia,
completou:
“De resto, quando os observadores aplicam um
novo instrumento ao estudo da natureza, aquilo que eles disso esperam é sempre
pouca coisa relativamente à sucessão de descobertas de que o instrumento se
torna origem. Neste gênero, é com o imprevisto que devemos contar
particularmente”. (in Freund,
19- p.39)
O pintor Delaroche
compartilhava das visões de Arago:
“...é permitido esperar que
poderemos realizar mapas
fotográficos do nosso satélite. Quer dizer
que se executará em
alguns minutos uma
das tarefas mais delicadas da
nossa astronomia.” (in Freund,
19- p.39)
A
apresentação da fotografia na Academia de Ciências foi um grande acontecimento em Paris. A arqueologia, a
astronomia e a ciência em geral, seriam em primeiro lugar as grandes
beneficiadas com o invento. Nos jornais artigos e declarações proliferavam, não
eram apenas os homens de ciências que analisavam as possibilidades da
descoberta, também filósofos, artistas e religiosos defendiam posições. Uns
contra , outros a favor. Num primeiro momento a Igreja se coloca contra, a exemplo do artigo num
jornal alemão de 1839:
“querer
fixar reflexos fugidios
não só constitui
uma impossibilidade , como
demonstram as seríssimas experiências feitas na Alemanha, mas o simples fato de
querer tal coisa confina com o sacrilégio. Deus criou o Homem a sua imagem e
nenhuma máquina humana pode fixar a imagem de Deus; ser-lhe-ia preciso trair de
repente os próprios princípios eternos para permitir que um francês, em Paris, lançasse ao mundo uma invenção tão
diabólica”. (In Freund, 19- p.79)
Muitos
críticos, artistas e pensadores de arte também se colocavam contra a
fotografia, vista como algo ameaçador para a “arte elevada”. Afinal, por que se
preocupar em pintar o real se a fotografia faria melhor? Ou então: seria a
fotografia uma nova arte? Apenas sua existência já era motivo para polêmica. As
diversas considerações de uso provocavam uma mistura de admiração e temor. A
grande maioria dos artistas a recusava como arte, aceitando-a no máximo como um
auxiliar subordinado às Artes ou a Ciência. Delacroix, por exemplo, considerava
a fotografia como um “auxiliar valioso” para completar o ensino de desenho, mas
a rejeitava como arte, o mesmo acontecendo com os pintores históricos que
faziam algumas de suas obras com base em daguerreótipos. Ingres, um dos maiores pintores de sua época,
considerava a fotografia e os artistas modernos (Romantismo e Realismo) como
“profanadores do templo sagrado da arte”, e
discursava:
“Querer misturar a indústria à arte, a
indústria! nos não a queremos! Que ela se mantenha em seu lugar e não venha
estabelecer-se nos degraus da nossa Escola de Apolo, consagrado apenas às artes
da Grécia e de Roma. (in Freund,
19- p.84)
O
surgimento da fotografia coincide com a revolução industrial, sendo deste modo
classificada como um produto da indústria. Para muitos havia uma verdadeira
“luta” entre a arte e a indústria. Nesta época foi feita em Paris um abaixo
assinado de protesto, onde diversos expoentes da arte declaravam que entre a
fotografia e a arte nada havia em comum. Os pintores e pensadores em geral
valorizavam o fazer manual do artista, enquanto o fotógrafo era apenas um
observador do processo. A maquina e os elementos químicos fariam tudo, não
cabendo ao fotógrafo nenhum mérito pela imagem criada.
O
poeta Baudelaire foi um dos que mais praguejavam contra a fotografia,
considerava a invenção como “algo devido à mediocridade dos artistas modernos,
bem como refúgio de todos os pintores falhos”. Criticando severamente o
fascínio que a sociedade francesa tinha pelo processo fotográfico:
“Em matéria de pintura e estatuária, o credo
atual das pessoas de sociedade, principalmente na França ( e não acredito que
alguém ouse afirmar o contrário) é o seguinte: ‘acredito na natureza e só na
natureza ( há boas razões para isso). Acho que a arte só pode ser representação
exata da natureza (...) Assim, a
indústria que nos desse um resultado idêntico à natureza seria a arte
absoluta’. Um Deus vingador acolheu favoravelmente os desejos dessa multidão.
Daguerre foi seu Messias. E então ela disse para si: ‘como a fotografia nos
proporciona todas as garantias
desejáveis de exatidão (eles acreditam nisso, os insanos!) a arte é a
fotografia’. A partir desse momento, a sociedade imunda precipitou se, como um
único Narciso, para contemplar sua imagem trivial no metal. Uma loucura,
um fanatismo extraordinário apoderou - se
de todos esses
adoradores novos do sol”. (in
Dubois, 1994 p.27-28)
Apesar
da posição contrária dos artistas muitos acabariam por se tornar fotógrafos ou
mesmo se deixaram fotografar. O próprio Baudelaire é o exemplo maior dessa
contradição, sendo fotografado varias vezes tanto por Nadar quanto por Carjat.
Os artistas e intelectuais foram os primeiros a serem fotografados, já que por
sua própria natureza estavam mais dispostos
a novidades vendo-as com menos preconceito. É interessante notar que
Nadar, Baudelaire, Delacroix, Gustave Doré, Carjat e muitos pintores e
fotógrafos eram amigos. Há um grande numero de artistas registrados desse
período, justamente por essa proximidade.
A fotografia pouco abalou os grandes pintores
de sociedade, mas atinge de forma devastadora aqueles que trabalham para a
baixa e a média burguesia, os fisionotracistas
e os miniaturistas. A fotografia surge fazendo forte concorrência
comercial, por ser uma novidade e por proporcionar preços muito mais em conta.
Desde a Revolução Francesa o retrato se tornara uma mania da burguesia e até
certo ponto uma necessidade psicológica. Fazer-se retratar era prova de
ascensão social. Antes o retrato (pintado) era um privilégio somente possível a
figuras abastadas da sociedade, e deste
modo, uma forma de auto afirmação. A miniatura e o fisionotraço eram a
forma mais barata de satisfazer a tal necessidade.
O
perfil do fotógrafo muda várias vezes durante a história. Num primeiro momento
eram cientistas (muitas vezes amadores), já que a fotografia necessitava de
vastos conhecimentos de física e química; em seguida vieram os experimentadores,
que com a divulgação se multiplicaram a testar o novo invento; e no terceiro
momento são os artistas, (muitos pintores a óleo , miniaturistas e
fisiotracistas) falidos pelos fotógrafos. Por volta de 1850 a fotografia já
estava suficientemente simplificada para ser utilizada pelas pessoas
“comuns”( não cientistas, mas a
fotografia só se populariza no final do século XIX), muitos artistas que na
véspera eram contra a fotografia agora a tomam como profissão. Os trabalhos
desses profissionais apresentavam um acabamento primoroso, sendo hoje
considerados como os melhores do período. Fotógrafos como Nadar, Carjat, Le
Gray e Robinson eram desinteressados de pretensões artísticas, eram
profissionais e por isso mesmo hoje são vistos como artistas.
Em
1855, Courbet faz sua exposição individual, que intitulava “Le Réalisme”,
marcando com ela o início do movimento chamado de realismo. Sua intenção era de
pintar a natureza como observador imparcial, o mundo visível como seu único
domínio, assim desvalorizando a imaginação e por conseguinte a arte oficial (o
neoclássico) que idealizava a natureza. O realismo tinha sua estética
inseparável da filosofia positivista,
uma visão cientifica e social da realidade, ao ponto desses pintores recusarem
o rótulo de artistas e preferir em serem chamados apenas pintores. Na mesma
época ocorria a primeira exposição da indústria, onde a fotografia tinha um
salão especial. Enquanto a exposição fotográfica lotava, a de Courbet era
boicotada. Num primeiro momento o Realismo foi rejeitado pelo grande público,
mas depois foi aceito.
O
Realismo não sofria somente desprestígio com o público, mas também com a
crítica, que a considerava como resultado da influência negativa da fotografia.
O critico Delecleze se colocava contra o Realismo e considerava o “gosto pelo
naturalismo ser pernicioso para a arte elevada” e associava a fotografia à
decadência da arte.
Apesar
dos Realistas elogiarem os pintores que desapareciam “por de trás do cavalete”,
que separavam a imagem produzida, do artista que a produziu, a exemplo da
fotografia. Por outro lado eles também não consideravam a fotografia como arte,
pensamento comum a todos movimemtos até o Dadaismo.
Todos
concordavam num ponto: a fotografia era capaz de fazer a reprodução exata da
realidade. Um instrumento mimético por suas próprias características de
processo. Não havia qualquer dúvida sobre a existência do sujeito retratado.
Hoje esta fidelidade pode ser questionada, mas não a existência de pelo menos
parte desse sujeito (aspecto pelo qual a semiologia classifica a fotografia
como índice). A fotografia desempregou todos aqueles pintores que procuraram
“competir” com ela, criou um novo ramo de atividade criativa e eliminou uma
preocupação centenária: a necessidade da mímese. Deste momento em diante, a
pintura perde uma de suas grandes funções, a cópia da natureza, do mundo. E
neste sentido que muitos consideram a fotografia como grande a libertadora da
arte. Agora, o Romantismo poderia justificar sua busca pela emoção e a
valorização das cores; o Realismo poderia se preocupar com a verdade e o
social; e a pintura poderia se libertar definitivamente da “prisão” do traço.
Possivelmente
a origem da pintura do “borrão” esteja na fotografia, inspirada nos grãos de cloreto de prata dos Daguerreótipos,
talvez os impressionistas tenham descoberto a nobreza da luz ao observar
fotografias, tese que deve ser respeitada se lembrarmos que a primeira
exposição impressionista foi num estúdio fotográfico (1874), estúdio do mais
admirado fotógrafo do século passado, Félix Nadar.
Será
que Degas não retirou inspiração para suas inúmeras cenas de balé ao observar o
movimento em uma fotografia? É sabído que ele utilizava de fotos como base para
alguns de seus estudos. No Futurismo, por outro lado, não há dúvida sobre sua
inspiração na fotografia, mas especificamente na cronofotografia. O efeito da
velocidade e da simultaneidade que tanto marca a obra futurista. Inegável ao
observar obras como “jovem
balançando-se”, de Bragaglia e “dinamismo de um cachorro”, de Balla. Mas não
havia qualquer intenção de representar o real, afirmava Bagaglia:
“Não estamos interessados nas metas e
características da cinematografia e cronofotografia (...) Desprezamos a
reprodução exata, mecânica e glacial da
realidade, tomando o máximo cuidado em evitá-la. Para nós, ela é um elemento
negativo e nocivo, enquanto para a cinematografia é sua essência ...” (in Brill,
1988 p. 97)
Picasso
também fala sobre a importância da fotografia para a arte:
“Quando você vê tudo que é possível exprimir
através da fotografia, descobre tudo o que não pode ficar por mais tempo no
horizonte da representação pictural. Por que o artista continuaria a tratar de
sujeitos que podem ser obtidos com tanta precisão pela objetiva de um aparelho
de fotografia? Seria absurdo, não é? A fotografia chegou no momento certo para
liberta a pintura de qualquer anedota, de qualquer literatura e até do sujeito.
Em todo caso, um certo aspecto do sujeito hoje depende do campo da fotografia” (in Dubois, 1994 p.31)
Com a
fotografia, a arte deixa de ser popular, no sentido comercial. A exemplo do
Romantismo, se torna elitizada, restrita à certos círculos. E pelo fato de
desvincular-se do comércio, agora ela pode questionar criticamente a sociedade
e a si própria. A vanguarda artística iniciada no Impressionismo, busca
lentamente sua libertação do real, e obtendo o sucesso ao chegar no
Expressionismo Abstrato e no Construtivismo. Será que esta transformação
radical, ocorrida em poucas décadas, seria possível sem o surgimento da
fotografia?
Herbert Macário
Niterói,
1994
BIBLIOGRAFIA
. ARGAN, Giulio
Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Ed.
Companhia das Letras, 1993
. BRILL,
Alice. Da Arte e Da Linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1988
. DUBOIS, Philipe.
O Ato Fotográfico. Rio de Janeiro:
Ed. Papirus, 1994
. FREUND, Gisèle. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Ed.
Vega, 19-
. GOMBRICH, E.
H. A
História da Arte. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1994
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A primeira fotografia do mundo, por Nièpce em 1926
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Boulevard du Temple, por Louis Daguerre |
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